segunda-feira, 4 de julho de 2011

O filme do Gainsbourg, Joann Sfar e porquê os cartunistas um dia revolucionarão o cinema

Estreia nesta sexta-feira o filme "Gainsbourg - O Homem que amava as Mulheres", dirigido pelo cartunista Joann Sfar. Antes de tudo uma ressalva: me parece descabido (como sempre acontece) a tradução do título. No lugar de vida heróica colocaram o homem que amava as mulheres, emprestando o título do filme do Truffaut de 1977 para ampliar o apelo sexual que o filme tem, contando que a estratégia pode garantir mais entradas (e mais dinheiro). Sai o herói, entra o mulherengo. Sai o cartunista e músico de sucesso, com carreira brilhante, entra o cara (sortudo) que ficou com duas das mais belas mulheres da história recente: Brigitte Bardot e Jane Birkin.



Pois é com maestria que Joann Sfar, em sua estreia cinematográfica, consegue retratar todos esses lados da mesma pessoa, de forma leve, descontraída, sem se levar muito a sério (o que tem a ver, penso, com o jeito como Gainsbourg encarava todas as coisas). Não é a história oficial e verdadeira de Gainsbourg (como o diretor faz questão de anunciar no filme), senão uma interpretação livre e criativa de algumas das histórias relacionadas a ele, "um dos maiores artistas do século XX, que reinventou a música e o amor", como descreve o (belo) trailer.

Mas onde o filme mais acerta (pode deixar, sem spoilers aqui) é na mistura de linguagens e no uso criativo de muitos elementos narrativos. É como se o Gainsbourg pessoa fosse evoluindo junto ao Gainsbourg personagem, dialogando ação e imaginação durante todo o filme.

Isso acontece porque Sfar é um cara de imagens (é cartunista) e sabe dos potenciais narrativos na hora de contar uma história (em um e outro meio). Vai inclusive pelo caminho inverso da maioria das histórias baseadas em HQs: se a franquia X-Men se esforça mais a cada filme em parecer real e verossímil (o que fica ainda mais claro com esse First Class), usando os efeitos para provar o que só existia na nossa imaginação, no filme de Gainsbourg, efeitos, animação e uso de marionetes estão ali para sugerir, fantasiar e dialogar com a história que está sendo contada, ampliando seu potencial narrativo. Em um texto extremamente interessante de seu blog Sfar comenta seu processo criativo, mostrando como as duas coisas, ilustração e texto, quadrinhos e cinema, estão associados no seu trabalho (e como acaba usando um, mesmo quando está fazendo o outro). Como na frase (o blog está todo em francês e inglês):

"I also like this eternal feedback loop when shooting the movie, when I go back to my water-colours and draw a live actor being an imaginary character. (...) Building a narrative by opposing drawings and actor’s words, by making them dance together, is an inexhaustible source of inspiration."
(Trad.: Eu sempre gosto deste eterno vai-e-vem quando dirijo um filme, quando eu volto para a pintura e desenho um ator sendo um personagem imaginário. (...) Construir uma narrativa opondo desenhos e palavras dos atores, fazendo com que elas dancem ao mesmo tempo, é uma inesgotável fonte de inspiração)



Não por acaso seu novo filme (que estreou agora na França) é o desenvolvimento de uma das suas obras mais famosas. Desenvolvimento, já que: "I hate those stupid ideas like 'a movie based on a comic album'. When you create both yourself, it’s the same work." (trad.: Odeio estas ideias estúpidas como 'um filme baseado numa HQ'. Quando você cria as duas coisas, é o mesmo trabalho.") Le chat du Rabbin (ou o gato do rabino) é uma historia que ele começou em 2002 e que agora chega aos cinemas com o mesmo traço característico. Abaixo o trailer (em francês).



Acho (ou torço para) que um dia o futuro do cinema pode vir também desses caras (me interessa especialmente esses casos); de pessoas que pensem o cinema de forma mais ampla, que misturem linguagens, que joguem com novos elementos, que misturem realidade, imaginação, sonho, etc. de forma que faça sentido (ou que seja ao menos atraente) e/ou fique visualmente interessante. As histórias em quadrinho jogam há muito tempo com algumas dessas ideias (falei mais disso aqui); é ver quando elas podem também chegar ao cinema de forma mais efetiva. O filme do Gainsbourg já é um desses exemplos. Fico imaginando o que Laerte, Angeli, Adão e Gonsales e, na América Latina, Quino, Liniers e Montt, para citar só alguns, poderiam contribuir ao nosso irregular (e às vezes pouco criativo) cinema.

6 comentários:

  1. Ricardo, acho que realmente, pode surgir coisa muito boa daí! Aliás, na minha opinião, sempre que linguagens diferentes se unem para criar algo novo, é muito positivo... No fundo, todas as artes estão entrelaçadas, e quando eles descobrem novas formas de interação, criam conteúdos completamente inéditos e, em geral, de grande qualidade.


    Fazendo um adendo, contudo, especificamente sobre a interação quadrinhos-cinema, a título de curiosidade mesmo, você chegou a ver o comentário do Joe Sacco na Flip, quando perguntado se levaria suas histórias pras telonas? "Todos me perguntam isso, não sei porque. Não acho que os quadrinhos necessariamente precisem ser levados ao cinema. Não considero a arte do cinema superior à arte dos quadrinhos."

    ResponderExcluir
  2. Concordo plenamente com você, Juliana. Sou mais um entusiasta da mistura de linguagens.

    Sobre o Joe Sacco, não vi a palestra na Flip não, mas vi a da sabatina do Uol e ele falou algo bem parecido por lá. De fato a linguagem do cinema não é nada superior à dos quadrinhos. Em alguns (ou muitos) casos acho que é inclusive inferior. Quadrinhos são em geral um meio mais livre (não tem tanta obrigação em gerar muito dinheiro, até pelo custo de produção e pela frequência que sai) e têm um público bem mais aberto a inovações. Inclusive, um filme dos quadrinhos do Joe Sacco corria o risco de ser um docu-ficção bastante sem graça (ou seria apenas mais um documentário televisivo mesmo). A graça do que ele faz nos quadrinhos é passar a linguagem do documentário com uma arte realista e impressionante; retratada sem interferências (sem uma câmera); com milhões de detalhes do que ele vivencia no dia-a-dia; com representações dos pensamentos e lembranças das pessoas que vão aparecendo e dando seus depoimentos. Muito dificilmente o cinema conseguiria retratar tudo isso de forma eficiente; e jamais com a mesma graça. Não é mesmo?

    Obrigado pelo comentário. Bom ter opiniões bacanas assim por aqui. :)

    ResponderExcluir
  3. Aliás, sobre isso que você comentou, das limitações, o próprio Joe Sacco (sim, ele de novo! rs) falou a respeito do porquê escolher os quadrinhos como uma forma de jornalismo... Afinal, nos quadrinhos ele poderia retratar o que quisesse, podia desenhar fatos que aconteceram no passado, podia registrar ângulos que uma câmera não permitiria (porque ele teria que usar um helicóptero ou coisa assim...). Que os quadrinhos não têm limites. Achei isso um ponto de vista realmente muito interessante.

    Mas, de qualquer forma, acho que depende muito da forma como você trabalha. Também não acho que o caminho natural dos quadrinhos seja virar uma animação ou um filme, - e, em muitos casos, como os do Joe Sacco como você mesmo apontou, nem seria bom - mas existem casos em que isso pode gerar coisas muito boas e muito interessantes! :D

    ResponderExcluir
  4. Com certeza. Os quadrinhos são uma fonte inesgotável de ideias, que podem contribuir muito ao cinema. Como o que vimos nesse filme do Gainsbourg, por exemplo. Ou como no Hulk do Ang Lee, no Sincity do Frank Miller ou no Scott Pilgrim do Edgar Wright (meus favoritos nessa linha, eu acho). Para ilustrar todas essas coisas difíceis de serem retratadas, como (bem) falou o Joe Sacco, esses pelo menos usaram caminhos mais criativos. Ainda há muita coisa mesmo por vir por aí. Torcemos para que venha logo. ;)

    ResponderExcluir
  5. Caramba! Esse é um papo em que eu gostaria de meter o bedelho, mas não vou conseguir desenvolver direito aqui. Só queria lembrar que muito disso já foi feito com sucesso no cinema, nos melhores momentos dos filmes dos anos 20 e 60, em especial: Fellini e Godard, pra citar dois mais óbvios, q em alguns momentos conseguiram combinar experimento e resultado. O problema maior acho q não tá no meio, mas no que o Ric falou: custo de produção e, principalmente, o público (que ou é totalmente avesso a inovações ou inventa uma aura pretensiosa de "arte" que esconde as qualidades verdadeiras das boas obras).

    ResponderExcluir
  6. Boa, Valim. Isso me incomoda também em relação a público e crítica: quando fazem alguma experimentação visual mais diferente ou misturam linguagens, acham em geral que é gratuito e desnecessário e pregam o cinema clássico, mais purista. Acham que filme é basicamente roteiro e interpreação e qualquer coisa fora disso é deturpação da linguagem. Como quando saiu o Sherlock Holmes do Guy Ritchie e todo mundo saiu elogiando esse, porque "dessa vez os efeitos estavam à serviço da história", como falaram na Folha, como se antes os geniais efeitos do Guy Ritchie fossem desnecessários e gratuitos. Ridículo.

    ResponderExcluir